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V. Guilherme, 110 anos, e as reminiscências no carinho de um velho e ilustre morador

Tempo de Leitura: 8 minutos

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por José de Almeida Amaral Júnior (*)

A Vila Guilherme está nos meus ouvidos e nos meus olhos há mais de 50 anos. Não é muito, se tomarmos como parâmetro um bairro que está comemorando 110 anos de história, neste 12 de setembro de 2022. Porém, para quem vivencia o local diariamente, cinco décadas e tanto já permitem certo domínio a respeito, uma boa fonte de causos e avaliações sobre a região.

Quando aqui cheguei com meus pais e um irmão ainda bebê, a rua Joaquina Ramalho no trecho que passamos a morar, não tinha iluminação à noite. A área dispunha de pequenos comércios para necessidades de consumo mais urgentes, escolas relativamente próximas e um ambiente bastante familiar pairava sobre tudo aquilo.

Havia terrenos amplos que possibilitavam à molecada jogar futebol sem medo de broncas dos vizinhos ou dos automóveis. Crianças brincando nas vias e moradores sentados na porta eram coisas comuns.

Pipas, bolinhas de gude, pega-pega eram quotidianos. A Vila guardava um certo clima de interior. Muitas residências com belos espaços incluíam arvores frutíferas e jardins. Olhar as luzes do Centro desde a varanda de casa, no alto do morro, era um espetáculo à parte: a “selva de pedra” vista ao longe pulsava, enquanto sobre a gente o céu noturno permitia-nos ver as estrelas de forma generosa. O tempo, aparentemente, fluía sem muita pressa para mim. Mas, foi tudo uma pueril ilusão.

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Uma Vila Guilherme em 2022

Hoje, neste 2022, além dos 110 anos de fundação, os moradores da Vila também festejam as duas décadas da publicação da obra “São Sebastião e a Vila Guilherme – Memórias Paulistanas da Zona Norte”. Trabalho que nasceu com intenção de celebrar os 50 anos daquela pioneira Paróquia. Ideia do padre Fernando Moreira, que sugeriu à sua frequentadora, Benedita C. Carvalho Silva, iniciar pesquisas para tanto.

Ela, por sua vez, me aproximou das intenções. Tal fato permitiu propor ao religioso, aproveitando o estudo a ser começado, a ampliação do objeto, isto é, também narrar um pouco da caminhada do bairro. E assim foi feito.

O esforço resultou em um precioso documento publicado em 2002 sobre a história da região – e por conseguinte da cidade de São Paulo – contada pelos seus personagens, pela população. Mais de 100 pessoas.

Coisa rara, até então, em se tratando de bibliografia dos bairros paulistanos. Foram 1000 exemplares que se esgotaram há muito. Recentemente, diga-se, o atual padre, Luiz Cláudio Vieira, e seus fiéis, a fim de comemorar o Centenário da comunidade, entre outras empreitadas de melhorias no prédio que agora se acha renovado, fizeram uma curta segunda tiragem do livro.

Nas quase 200 páginas do volume vai registrado um retrato bastante contundente das peripécias dos moradores da Vila Guilherme ao longo de século e tanto.

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O tempo e os sacrifícios 

Infância e adolescência, estudando nas escolas públicas da região, pude aos poucos aprender a observar a existência dos problemas socioeconômicas que nela conviviam. Vários colegas de classe moravam em ruas que sofriam com repetidas enchentes e com o mau cheiro dos lixões. Especialmente aqueles viventes na área mais baixa, próxima ao Tietê.

Em cima, lembro de amigos residentes em cortiço e em habitações com precariedades na construção. Por outro lado, felizardos, alguns poucos tinham até telefone. Nas páginas da obra muitos relatos mostram como foi dura a vida da maioria dos habitantes, da “planície” e do morro.

Árdua a ponto de motoristas de taxi não quererem avançar muito além da Ponte da Vila Guilherme – funcionando no final dos anos 1960, deslocando em definitivo o eixo principal do bairro da Av. Guilherme para a Joaquina Ramalho – para deixar seus passageiros, por conta da má conservação do asfalto e seus buracos assustadores. Injusta humilhação sobre um bairro por muito tempo periférico, “além Tietê”, espremido entre Vila Maria e a influente área de Santana.

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As oportunidades surgem na região

As coisas passaram a mudar com os impulsos ocorridos lentamente desde o final dos anos 60 que perceberam oportunidades na região norte. A chegada da linha norte-sul do metrô, do Parque Anhembi, de investimentos privados como a Ericsson, o Makro, o Carrefour; da Rodoviária do Tietê e do Center Norte, por exemplo, marcam o interesse da administração pública e empresarial em desenvolver o setor.

E a Vila Guilherme entrou nessa nova frequência, recebendo seus efeitos. E, à sua maneira, prosperou. Tanto que desde 1992 emprestou seu nome ao distrito municipal local, envolvendo os vizinhos Carandiru, Chácara Cuoco, Jardim da Coroa, Parque Velloso, Vila Isolina, Vila Isolina Mazzei, Vila Leonor, Vila Munhoz, Vila Paiva, Vila Pizzotti, Vila Salvador Romeu, Vila Santa Catarina e, claro, Vila Guilherme. O bairro ganhou projeção.

Passado o tempo, noto que são diversas as propagandas sobre a área que alardeiam coisas que me remetem àquelas sensações da infância:  … está entre os bairros da capital paulista que melhor trouxe o desenvolvimento para perto de si sem abrir mão do clima das cidades pequenas. […] Sua fama é justamente oferecer aquele ar tão incrível do interiorCharme da Zona Norte. Etc.

Em 2017 a Folha de S.Paulo publicava matéria dizendo “Boa fama da Vila Guilherme ajuda bairros vizinhos”. Então, agora taxistas e ubers certamente não evitam mais fazer suas corridas pelas ruas! O jogo mudou. Contudo, fora a publicidade e o marketing sedutores, qual o cenário de fato? Quem é hoje o morador da região? Como vive? Poucos falam sobre com seriedade. Vejamos alguns pontos básicos:

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A Vila Guilherme, segundo a Rede Nossa São Paulo/ Mapa da Desigualdade 2021, que usa dados de fontes oficiais e públicas, tem como distrito 57.079 habitantes. Sua população preta/parda totaliza 22%, bem menor que a média da cidade, que é 37%. Tem 53% de habitantes sendo do sexo feminino. Sua população infantil é 9,2%, ou seja, poucas crianças. 36% da população é jovem (até 29 anos), abaixo da média da capital paulista.

A expectativa de vida é 72 anos, acima da média da cidade, 68 anos. Na saúde, tem 7% de gravidez na adolescência (19 anos ou menos para nascidos vivos). Revela alta mortalidade materna: entre os 96 distritos municipais é a 8º maior taxa. Mortalidade infantil preocupa: tem coeficiente 13,3, frente a média de 9,9 da cidade. O Atendimento Primário leva 34 dias de espera, acima do tempo do município, que é 28 dias.   A Consulta de Atenção Especializada, demora 37 dias, equivalente à média do tempo na capital. Percentual da população coberta por Atenção Básica, 59 %, contra média da cidade de 72 %.

O distrito apresenta média de 3 moradores por domicílio. 2% de sua população vive em favelas. A remuneração média de emprego formal é R$ 3.910,00. Arrecada 0,4% do ISS municipal. A população tem alta dependência de ônibus para chegar a metrô ou trem. A violência geral contra mulheres é um dado horroroso: dos 96 distritos é o 6ª em agressões. É o 9º contra população LGBTQIAP+. Sobre violência racial, cai para 0,7% contra 1,6% na média da cidade. A taxa de homicídio de jovens é 19,7, dado acima da média 16,5 de São Paulo. Mortes por intervenção policial 1,7%, contra média 2,5% da capital.

Educação, tempos para se obter vaga em creche: 75 dias. Percentual de matrículas no Ensino Básico em escolas públicas e conveniadas em relação ao total de matrículas, 79%. Índice do Nível Socioeconômico das Escolas públicas: 5,3, estando na média da cidade. A Cultura tem o distrito entre os 4 melhores espaços públicos no setor, em proporção para cada 10 mil habitantes.

Todavia, não dispõe de cinema, teatro, museu ou iniciativa independente. É o 2º melhor bairro em coleta de resíduos sólidos per capita, contudo, o percentual de resíduos domésticos coletados seletivamente, por subprefeitura, é bem abaixo da média da cidade. Acesso à internet móvel por antenas é o dobro da média da cidade.

Outra referência, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH/2010), crava 0,868 para a área e nos coloca no 37º lugar entre os 96 distritos da capital.

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Dados com deficiências

Como panorama, os dados acima revelam uma área ainda com diversas deficiências. São pendências importantes a serem resolvidas para se qualificar entre as melhores da metrópole. O “selo de qualidade” da Vila Guilherme, resultado do progresso das últimas décadas e que atrai gente de outras redondezas, obscurece a realidade dos fatos acima.

E estimula um sério problema: a especulação imobiliária e a consequente verticalização. Aqui é importante pensarmos na lógica do capital e sua genética necessidade pelo lucro. A Vila Guilherme entre os bairros da Zona Norte passou a ter apelo. Os terrenos disponíveis da região estimulam essas empreitadas. Temos uma infraestrutura que atrai.

Entretanto, aumentar a massa populacional trará vários custos e efeitos colaterais. Se não houver uma regulação, uma racionalidade, a graça do “rincão com cara de interior” – fruto de um acaso histórico da dinâmica do capital e seus interesses na geografia diversa da cidade – vai se perder e se tornar igual a muitas outras. Vale lembrar que dados 2014 da Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis colocava Vila Maria/ Vila Guilherme como muito baixa densidade de áreas verdes para a região.

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Olhando para o somatório do cenário, esse é o progresso desejado pelo morador? A “selva de pedra” está nos engolindo. Desta forma, festejando os 110 anos da Vila Guilherme, evidencia-se que é preciso a sua população ser menos indiferente e mais crítica frente ao poder público, as autoridades locais e municipais.

Quanto maior a presença e o entusiasmo para se pensar as questões várias da região, mais nos aproximaremos de um aperfeiçoamento do local e da redução das mazelas existentes. Creio que o caminho é a efetiva participação coletiva. Com empenho, planejamento e transparência. Buscar saúde e bem-estar geral. Rumar objetivando políticas de maior qualidade de vida. Somente assim aumentaremos a chance da história nos sorrir no futuro: vivermos em uma prazerosa “reserva interiorana” apesar do perdurável caos da metrópole desvairada.


Vale a pena ler de novo. (Re)leia as reportagens do DiárioZonaNorte com referências à Vila Guilherme:

  • 100 anos da Capela de São Sebastião da Vila Guilherme com muitas comemorações – 09/01/2022 – clique aqui
  • Na Vila Guilherme, Capela de São Sebastião comemora 100 anos com reedição de livro, vídeo-documentário e muitos depoimentos – 18/01/2022 – clique aqui

(*) José de Almeida Amaral Júnior — Professor universitário aposentado e palestrante; economista, mestre em políticas de educação, pós-graduado em sociologia e história da arte. Atuou na imprensa escrita impressa, digital e em rádio. Escreveu quatro livros sobre a história de São Paulo — um deles, “São Sebastião e a Vila Guilherme – Memórias Paulistanas da Zona Norte, com Benedita da Conceição de Carvalho Silva —  e seus músicos populares. É Conselheiro Honorário do Clube do Choro de Santos e atualmente conselheiro gestor eleito do SUS Cecco Parque do Trote – Vila Guilherme.


Álbum / Portifólio — Clique em cima da foto para expandí-la ===  Imagens antigas da Vila Guilherme:

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