caçada
por Rafic Ayoub (*)
<< Crônica 6 >> === Confesso que sempre me emociona ouvir a inesquecível música “Assum-Preto”, de autoria da dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que considero um dos mais belos poemas de todo cancioneiro popular brasileiro, principalmente pelo seu inspirado verso que compara o roubo cruel da visão de um pássaro de cantar maravilhoso e tornado cego com um espinho de laranjeira para que cantasse melhor, com o roubo do grande amor do poeta, que era a luz dos olhos seus! De uma beleza simplesmente magnífica!
E toda vez que a escuto, imediatamente me vêm à memória algumas lembranças inesquecíveis dos velhos e bons tempos de menino, na querida cidade mineira de Monte Carmelo como, por exemplo, de meu querido e saudoso irmão Abdo Ayoub, cujo talento, para o profundo desgosto de minha mãe, era voltado para a triste arte de criar passarinhos, chegando a manter em cativeiro mais de 20 diferentes espécies nativas da região.
Como uma prática consagrada entre todos os criadores de pássaros da cidade, esses indefesos passarinhos, além de postos para brigar entre si chegando a provocar, às vezes, até a morte de um deles, tinham também suas gaiolas cobertas por grossas capas de pano preto durante todo o dia, para estimular seus pungentes cantos de dor e de tristeza.
Em minha casa, essa prática durou até que, numa linda manhã de primavera, indignada com todo esse sofrimento, minha mãe abriu as portas de todas as suas gaiolas e libertou para sempre todos os passarinhos até então mantidos em cativeiro pelo meu irmão, que chorou, esperneou e, depois de alguns convincentes tabefes, acabou se conformando com essa tão sábia decisão dela.
A ave do amor
Curiosamente, uma cruel mentira divulgada naquela época, afirmava como terna verdade, que o coração torrado e transformado em pó de um anu-branco, uma ave pouco comum na região, de bico grosso e de cauda longa, com cerca de 30 cm de tamanho, se atirado sobre a garota amada, ela cairia imediata e definitivamente de amores por quem a atingiu, fosse branco, negro, pobre ou rico!
Nem é preciso explicar que essa espécie já rara de anu-branco praticamente quase foi à extinção em toda Monte Carmelo e região, tamanha procura e crueldade do bando de interessados em testar a eficácia do método nas conquistas amorosas que, ao contrário do prometido, provocava mesmo era o asco e a ira das mais lindas garotas da cidade pela sujeira em seus cabelos e em suas melhores roupas de sair!
Anos depois, percebi que talvez o mais grave problema imposto pela adolescência, motivado naturalmente pela pouca idade e experiência, é a dificuldade para entender e definir sentimentos, emoções e, principalmente, a certeza de saber diferenciar o que é certo do que é errado.
As peripécias de adolescentes
Além de violar e destruir caixas de marimbondos com setas de papel jornal afiladas com pontas de espinhos de babaçu, eu e meus amigos adolescentes tínhamos outro mórbido prazer ainda pior, que era o de simplesmente matar indefesos e inofensivos passarinhos a golpes certeiros de estilingues, apenas pelo prazer de produzir marcas em nossas forquilhas, numa bizarra competição para saber quem matava mais passarinhos !
Lembro-me bem e com profunda dor no coração e, principalmente, na alma, de uma extraordinária caçada que eu fiz, em plena sexta-feira da paixão, nos campos cerrados ao redor da cidade.
Armado daquela vez com uma espingarda municiada com cargas de chumbo e pólvora, socadas com buchas de papel ao longo de todo o cano com uma longa vareta metálica , os tiros eram disparados por pequenas espoletas detonadas por um gatilho existente na parte superior da corona.
Meu velho e sábio pai sempre me recomendava observar o exemplo dos animais carnívoros , que matam suas presas só para se alimentarem, enquanto que os homens, infelizmente, matam, na maioria das vezes, pelo simples prazer de matar!
Porém, além do pecado de ter sido cometido em plena sexta-feira da Paixão, essa caçada abalou profundamente não só a minha autoestima e segurança, mas também, as minhas próprias convicções religiosas e espirituais.
Tudo começou quando eu me encontrava a caçar no meio da tarde em pleno campo cerrado e sob uma fina chuva fria, quando avistei um solitário anu-branco pousado no alto de um grande pé de jatobá e, aproximando-me devagarinho com a espingarda já devidamente carregada, posicionei-me bem debaixo dele, fiz a mira e disparei.
Os desacertos da pontaria
Até aquele dia, eu sempre me gabava de ser um bom caçador, de excelente pontaria, calma e muita frieza na hora de disparar os tiros, porém, naquele momento, falhei miseravelmente, fazendo com que o anu-branco voasse para árvores cada vez mais distantes.
Perseguindo obstinadamente esse pássaro branco por todo o campo, tinha a sensação de que ele me provocava, desafiando-me a atingi-lo , pois ele aguardava que eu me aproximasse das árvores em que pousava, esperava que eu o mirasse com a minha arma e atirasse de novo, de novo e de novo, sem nunca conseguir acertá-lo!
Já com minhas roupas completamente molhadas pela chuva que continuava caindo fina e fria naquela fatídica sexta-feira da Paixão e preocupado em não perder de vista os deslocamentos do anu-branco que eu perseguia cada vez mais raivosamente, não percebi que a capanga de algodão em que eu carregava a minha munição também se molhara.
Finalmente, pousado sobre um velho angico, o anu-branco ficou esperando mais uma vez que eu me aproximasse, apontasse para ele, puxasse o gatilho e, para a minha grande frustração, constatar mais uma vez que o tiro falhara, em razão da chuva ter molhado a carga de pólvora, papel e chumbo no cano da espingarda.
Rogando pragas aos céus, comecei a desmontar e a retirar toda carga entupida no cano da espingarda, com a ajuda da longa vareta metalizada e de uma agulha de costurar sacos de cereais, que era usada para limpar o “ouvido” da arma, que é o orifício conectado à base do cano da arma e onde se coloca a espoleta para ser detonada pelo gatilho e, assim, provocar o disparo.
Segurando na mão esquerda a agulha de costurar sacos toda suja de pólvora usada para limpar o ouvido da espingarda, com a mão direita eu tentava empurrar para baixo a longa vareta metálica para atingir e desentupir as cargas de papel, chumbo e pólvora molhadas que entupiam o cano.
A mensagem deixada nos ares
E num último esforço para atingir as cargas molhadas, forcei a longa vareta com ambas as mãos superpostas, esquecido de que tinha na mão esquerda a agulha suja de pólvora com a ponta voltada para baixo, exatamente em direção ao dedo polegar da mão direita , quando a carga no interior do cano cedeu repentinamente e a agulha, então na minha mão esquerda, desceu e penetrou meu dedo polegar da mão direita, furando-o de lado a lado.
A imagem aterrorizante de meu dedo trespassado pela grande agulha de costurar sacos toda suja de pólvora fez com que eu, de imediato, a arrancasse com um forte puxão e, curiosamente, sem que escorresse uma única gota de sangue, talvez pela ação da própria pólvora, cuja cor escura trago até os dias de hoje impregnada como um selo definitivo em meu polegar da mão direita.
Atordoado pelo desfecho terrível dessa tão frustrante caçada, sentei-me todo molhado e trêmulo ao pé do angico, tentando amarrar meu polegar ferido com um paninho de nylon sujo que eu carregava na capanga para limpar a arma.
E, de repente, olhando para cima, tive uma visão fantástica e de um esplendor indescritível que, confesso, até hoje difícil de compartilhar, sob risco de passar por mentiroso, bêbado ou drogado, porém, que me fez enterrar ali mesmo e para sempre, a minha velha espingarda de caça!
Fortemente emocionado e sem conseguir conter o choro, vi o anu- branco subindo de galho em galho até o alto daquele grande angico e olhando-me fixamente, transformou-se repentina e milagrosamente num lindo ser iluminado que, abrindo um par de asas enormes, alçou um último e definitivo voo rumo aos céus!
Perplexo com o que acabara de testemunhar, acompanhei com o meu olhar ainda hipnotizado, uma pequena e delicada pluma branca que, esvoaçando devagarinho, devagarinho por entre os galhos do grande angico, caiu diretamente sobre a palma de minha mão ferida, provocando em mim um choro ainda mais compulsivo e doloroso, a romper a solidão triste e silenciosa do cerrado naquela inesquecível tarde chuvosa de sexta-feira da paixão!
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(*) Rafic Ayoub, jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e pós-graduação em Mídia, Política e Sociedade pela FESPSP – Faculdade Escola de Sociologia Política de São Paulo, é também poeta, dramaturgo e autor do recém-lançado livro “ Miserere Nobis – Crônicas do Cotidiano”. Atualmente é consultor especializado em Comunicação Corporativa Integrada.
Nota da Redação: O artigo acima é totalmente da responsabilidade do autor, com suas críticas e opiniões, que podem não ser da concordância do jornal e de seus diretores.
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