Danúbio
por Rafic Ayoub (*)
< Crônica 5> === A música clássica, especialmente a lírica, me fascina desde os meus dez anos de idade, quando ouvia no rádio os grandes autores como Beethoven, Strauss, Mozart, Bach, Schubert, Chopin, Brahms, Wagner, Vivaldi, Haendel, Paganini e as cantoras líricas como a eterna diva do mundo árabe, a egípcia Ulm Kalssun , e a insuperável soprano grega Maria Callas.
Essa fascinação começou quando meu pai comprou uma grande e moderna “eletrola”, dotada de rádio, toca discos e dois poderosos alto-falantes dourados na loja do saudoso Mário Moreira, na Avenida Olegário Maciel, especialmente para ouvir notícias diretamente da Rádio Nacional do Cairo, capital do Egito, sobre as crescentes tensões políticas que antecederam as guerras deflagradas em todo o Oriente Médio.
Fã incondicional do então presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que na década de 1960 tentava, ao lado do presidente sírio Hafez el Assad, a criação conjunta da República Árabe Unida (RAU), meu pai ficava direta e permanentemente conectado à potente Rádio Nacional do Cairo, que alternava seus noticiários com uma programação de músicas clássicas e líricas.
Recordo-me perfeitamente como se fosse hoje, que o tema de abertura do programa de músicas clássica e lírica da Rádio Nacional do Cairo era a inebriante e inesquecível “Danúbio Azul”, do compositor austríaco Johann Strauss II.
Composta em 1866, a obra só foi lançada um ano depois, em 1867, em um baile de carnaval realizado no salão de um clube aquático de Viena, por um regente chamado Rudolf Weinwurm, pois Johann Strauss não pode comparecer por ter na mesma noite uma apresentação agendada na corte imperial.
Até hoje mais identificada com a Áustria do que o seu próprio Hino Nacional, “Danúbio Azul” ou “DonauWalzer”, como é conhecida em alemão, tinha originalmente o nome de “ An Der Schönen Blauen Donau” (No Belo Danúbio Azul), uma homenagem ao extenso rio austríaco que, curiosamente, de azul não tinha nada, pois era e é até os dias atuais de um verde acinzentado.
Com a sua beleza incomparável reconhecida até por alguns dos demais grandes compositores da música clássica universal como, Richard Wagner e, em especial, por Johannes Brahms, que lamentou que ela não tivesse sido de sua autoria, um século depois “Danúbio Azul” conquistou o espaço sideral, quando o famoso diretor Stanley Kubrick a utilizou na trilha sonora de seu consagrado filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”.
Através das ondas da poderosa Rádio Nacional do Cairo, eu ficava ansiosamente aguardando a abertura e o fechamento do programa musical apenas para ouvir “Danúbio Azul”, cujos acordes e movimentos me proporcionavam, além de um prazer indescritível, uma grande paz de espírito.
Um recado ao sistema educacional no Brasil
Uma das maiores críticas que faço ao sistema educacional brasileiro vigente até as décadas de 1960 e 1970, refere-se à ausência de uma cadeira voltada para as atividades de desenvolvimento artístico, especialmente nas escolas públicas, onde os jovens pudessem descobrir e exercitar seus potenciais em todas as áreas da criatividade.
Essa crítica pode ser melhor entendida se nos permitíssemos perguntar quantos talentos teriam tido a oportunidade de descobrir e/ou serem descobertos e direcionados para as diversas áreas do universo das artes, seja como músicos, instrumentistas, cantores, pintores, atores, cenógrafos, escultores, artistas plásticos, escritores, etc. ou o simples despertar para os prazeres que as diferentes formas de arte proporcionam.
O que a música ensina
No meu caso, aprendi nessa fase a acreditar no poder transformador da música como no dos contos de fadas que, como asas, nos transportam para o plano dos sonhos e da imaginação, iluminando nosso caminhar ao longo do tempo até o duro despertar da fase adulta, acreditando doce e puramente que o impossível também era possível!
Aprendi também que é através da música, ou do poder vibracional da frequência do som, que na maioria das vezes, ouvimos a voz do coração que, como uma doce sinfonia, rege o nosso destino no instante preciso do tão sonhado encontro de almas.
Sim, descobri que através da música eu podia tudo, bastava fechar os olhos e me transportar para acessar um campo de infinitas possibilidades , como falar com a lua e com as estrelas ou, mesmo, de estar em total harmonia e sincronicidade com a realidade à minha volta e, principalmente, com todo o universo.
A exemplo das crianças do célebre conto do Flautista de Hamelim, dos irmãos Green, incapazes de resistir aos encantos de sua música, eu seguia as notas musicais que pulsavam de cada som entranhado em minha alma, sentindo que em algum lugar dentro de mim os sonhos estavam apenas começando.
A música que vinha do acordeon
Infelizmente, a realidade acabou sendo mais dura e inflexível do que eu poderia imaginar!
Como estudante de escola municipal na saudosa e pequena cidade mineira de Monte Carmelo, a única manifestação artística se resumia às vésperas das datas históricas e de apelo cívico, como Festa da Independência, Dia da Bandeira, etc. para que todos os alunos fossem reunidos no seu grande pátio, para cantar em uníssono, todos os hinos que o amor à Pátria recomendava.
Limitado por essa triste circunstância de vida naqueles anos, lembro com imensa saudade de uma garota vizinha , a poucos quarteirões de minha casa que , todas as tardes, tocava “Danúbio Azul” em seu acordeon, que me levava, por diversas vezes, a permanecer horas sob a sua janela para ouvi-la dedilhar tão magistralmente essa linda valsa, me emudecendo e me emocionando como nos tempos em que a ouvia na Rádio Nacional do Cairo.
Outras vezes, querendo ao mesmo tempo, ouvi-la e assisti-la nesses seus concertos vespertinos, eu atravessava a cerca de arame farpado de um grande terreno em frente à sua casa e subia num enorme pé de jatobá onde, extasiado, me sentia numa espécie de camarote exclusivo a acompanhar um privilegiado e inesquecível recital.
E foi ali no pé de jatobá, ao som do acordeon, com os meus olhos cerrados e minha alma desperta, pude, finalmente, sentir e compreender que, assim como as palavras, a música também exerce o poder mágico da cocriação e da sublime manifestação divina.
Eu nunca soube o nome dessa menina notável que tocava tão maravilhosamente “Danúbio Azul” em seu acordeon, sem sequer imaginar que, em algum lugar, do lado de fora, um pequeno coração chorava emocionado e, silenciosamente, a aplaudia, pedindo bis!
Comentários e sugestões: [email protected]
(*) Rafic Ayoub, jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e pós-graduação em Mídia, Política e Sociedade pela FESPSP – Faculdade Escola de Sociologia Política de São Paulo, é também poeta, dramaturgo e autor do recém-lançado livro “ Miserere Nobis – Crônicas do Cotidiano”.
Atualmente é consultor especializado em Comunicação Corporativa Integrada.
Nota da Redação: O artigo acima é totalmente da responsabilidade do autor, com suas críticas e opiniões, que podem não ser da concordância do jornal e de seus diretores.