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Artigo especial do Cardeal Odilo Pedro Scherer (*)
No dia 25 de janeiro é comemorada a festa da cidade de São Paulo e o aniversário oficial de sua fundação. Naquele longínquo 25 de janeiro de 1554, não era possível imaginar o que viria a ser aquele pequeno aglomerado de indígenas e uns poucos portugueses neste Planalto de Piratininga.
No Pátio do Colégio, que hoje recorda o berço da cidade, iniciava-se a missão dos Padres Jesuítas entre os indígenas do Planalto. Padre Manuel da Nóbrega e o irmão José de Anchieta (São José de Anchieta) estavam entre eles. As boas relações com os indígenas permitiram que a missão prosperasse.
Além da ação propriamente religiosa e da ação missionária para “ganhar os povos para Cristo”, os missionários desenvolviam um projeto de encontro de culturas, em que o respeito pela dignidade e a saúde das pessoas, o esforço para a superação de conflitos e o estabelecimento da paz faziam parte.
A educação, testemunhada pela inauguração do pequeno colégio para os filhos dos indígenas, era parte integrante desse projeto. Os jovens aprendiam a ler e escrever, fazer teatro, cultivar a terra, edificar casas e a conviver em harmonia.
Pode-se dizer, em conceitos atuais, que o projeto evangelizador caminhava junto com um projeto de “desenvolvimento humano integral”. É claro que ainda não se usava esse conceito naquele tempo. Não se pode, pois, aceitar quem afirma hoje, de maneira simplista e errônea, que os missionários vieram a São Paulo e ao resto do Brasil com um projeto de dominação e exploração dos povos originários.
Certas narrativas, com a presunção de serem “históricas”, precisariam ser revistas. Esta reflexão, na comemoração do aniversário da cidade, levanta a pergunta sobre qual seria o projeto que temos hoje em relação a São Paulo, infinitamente maior e mais complexa que a aldeiazinha de 1554?
A pergunta pode ser dirigida à Igreja e suas organizações e expressões, mas também às autoridades públicas e às múltiplas organizações da sociedade paulistana. Para onde orientamos a vida da cidade? Ela possui uma economia pujante, que oferece oportunidades quase inesgotáveis a quem nela quer se inserir e trabalhar.
Há diversidade étnica e riqueza cultural enormes, um capital científico e tecnológico imenso, possibilidades educacionais e de cuidados à saúde como em poucas cidades do Brasil, poderosa comunicação e formação da opinião pública, uma enorme diversidade de expressões religiosas. São Paulo é uma cidade rica em muitos aspectos.
Que presente lhe podemos ainda desejar e oferecer em seu aniversário? O que São Paulo precisa ainda? Nossos olhares sobre a cidade, que se enchem de admiração e, talvez, também de ufanismo, correm o risco de não se dar conta das imensas carências desta mesma cidade.
Algumas vezes, essas carências são camufladas e quase tornadas invisíveis. Quem vê e fala da população que vive nos cortiços e nas ruas e praças do centro urbano, sem teto, sem trabalho e sem esperança? O que nossa cidade pensa para essa população? Quem vê e fala das imensas periferias pobres da cidade, sem casas decentes ou morando em casebres pendurados nas encostas de morros, prontas a virem abaixo na próxima chuva forte? Quem se preocupa com a enorme população que sobrevive sem um trabalho digno e estável, sem serviços básicos adequados, sem ruas que mereçam esse nome?
Quem vai resolver a precariedade de serviços públicos oferecidos a essas periferias, que cresceram de modo espontâneo e desordenado, e assim vão ficando há décadas? Quem vai resolver o problema fundiário de grande parte da população das periferias, que vive de maneira precária em espaços sem titulação de posse? Quem se importa que o crime organizado tome conta de áreas onde o poder público está ausente?
Quando essas carências da cidade mais rica do Brasil serão enfrentadas seriamente pela administração urbana e por todos aqueles que têm a possibilidade de ajudar a diminuir os sofrimentos de tantos paulistanos, oferecendo-lhes mais segurança e esperança para o futuro?
São Paulo, cidade poderosa, não pode se acovardar diante das imensas lacunas e débitos sociais em relação à sua população. O aniversário da cidade poderia ser ocasião para dar início a um projeto de médio e longo prazo para melhorar a cidade para todos. Mais que bolo de aniversário, a cidade precisa de um grande e variado mutirão de esforços para pensar as grandes questões pendentes desta querida e desvairada Pauliceia.
(*) Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer – Arcebipo Metropolitano de São Paulo e do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Artigo publicado originalmente no semanário O São Paulo, que é o órgão oficial da Arquidiocese de São Paulo, mantido pela Fundação Metropolitana Paulista.
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