filme ainda estou aqui
por Aguinaldo Gabarrão (*)
Quando o ex-deputado federal Rubens Paiva foi obrigado a sair de sua casa, escoltado por integrantes da repressão, sua família jamais poderia imaginar que, a partir daquele momento, só voltaria a vê-lo por meio das fotografias e filmes, registros de um tempo solar, de boa convivência e muita alegria.
A presença física do engenheiro civil e político, cassado pela ditadura em 1964, se apagava naquela tarde de 20 de janeiro de 1971. Este hiato terrível na vida da família Paiva é transmitido de forma contundente no filme ‘Eu Ainda Estou Aqui’, mas sem que esse fato seja um “vale de lágrimas”, justamente pela figura austera, mas absolutamente sensível, de Eunice Paiva, esposa e mãe.
Prisão e arbitrariedade
Adaptado da obra homônima do jornalista Marcelo Rubens Paiva – filho – e de outras referências documentais e entrevistas, o filme dirigido por Walter Salles tem em seu ótimo roteiro dois importantes demarcadores temporais: o início dos anos 70 e os anos 90. O primeiro período, sob as rédeas da ditadura, e o segundo, nos anos da democracia consolidada.
Essa linha do tempo facilita a compreensão do público quanto ao clima sufocante que ronda e se aproxima da vida cotidiana da família. Eunice, a esposa de Paiva, adquire, com a sucessão dos acontecimentos, a necessária clareza dessa teia que envolve seu marido.
Quando os acontecimentos se precipitam – ela e a filha Eliana também são presas e, posteriormente, libertadas –, a matriarca toma a decisão de ser o escudo protetor do núcleo familiar e lutar para descobrir o paradeiro do marido.
O olhar dos diretores
Para compor visualmente a atmosfera da vida dos Paiva, antes e depois do desaparecimento do político, Salles e o diretor de fotografia Adrian Teijido foram ousados ao optarem em rodar boa parte do filme em película de 35mm e algumas sequências em formato Super8 – algo impensável no Brasil, pois no mundo todo o processo é digital – obrigando a pós-produção a revelar as películas na França e na Inglaterra e, posteriormente, digitalizar todo o material.
Mas esse esforço permitiu a Teijido explorar possibilidades sensoriais que resultam em grande impacto emocional nos acontecimentos e na carga dramática sufocante de diversas sequências.
E Salles – que conheceu na juventude Eunice – valoriza o comportamento resiliente na maneira dela agir diante das dificuldades. Assim, na interpretação de Fernanda Torres, acertadamente, ele ajuda a atriz a calibrar a emoção, não deixando que se exteriorize para além do necessário. Tudo é contido, sutil. E ele estava certo, porque consegue o efeito de transmutar a lágrima e a tristeza em sorrisos, olhares e silêncios comoventes.
Por essa composição impecável, a intérprete ganhou o troféu de Melhor Atriz de Filme Internacional dos críticos de cinema dos Estados Unidos (Critics Choice Awards).
Elenco talentoso
A força do elenco ainda conta com Selton Mello. O ator trouxe para seu corpo e postura a alegria e bonomia de Rubens Paiva, apesar da escassez de registros fílmicos para ajudá-lo na construção da personagem. E sua breve participação é suficiente para causar um terrível vazio quando literalmente desaparece da cena.
O casting apresenta uma nova geração de atores e atrizes que brilham. E, na fase final (2014), Fernanda Montenegro, 95 anos, interpreta a matriarca devastada pelo Alzheimer. São pouco menos de cinco minutos, mas suficientes para ver no rosto de Montenegro a fração de dignidade e amor, motores das ações de Eunice em sua jornada.
Preservar a memória
O filme foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar 2025. A lista dos cinco indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional será divulgada no dia 17 de janeiro.
‘Eu Ainda Estou Aqui’ é importante, não só por apresentar a luta de Eunice Paiva, mas também por reconhecer, na preservação da memória, o elemento fundamental à dignidade humana.
O filme paira acima das possíveis e necessárias discussões sobre um dos períodos mais tristes de nossa história recente. E convida todos a refletir sobre como um regime de exceção impõe à sociedade um cruel apagamento civil: silencia vozes, apaga histórias e, sobretudo, encobre os algozes de suas ações.
Trailer do filme – clique na imagem abaixo:
<< Informações complementares >> === A história se passa no Rio de Janeiro e em São Paulo, na década de 1970, e é uma adaptação do livro autobiográfico homônimo de Marcelo Rubens Paiva, sobre sua mãe, Eunice Paiva. Na trama, Eunice é casada com o deputado federal Rubens Paiva (1929-1971) e vê sua vida mudar radicalmente depois que o marido desaparece pela repressão da ditadura militar. A dona de casa, então, se forma em Direito e vira ativista dos direitos humanos, sobretudo de causas indígenas e de famílias de desaparecidos políticos. O reconhecimento do Estado de que Rubens Paiva foi morto pela ditadura só veio em 1996. E a história do político ficou conhecida nacionalmente por conta da Comissão da Verdade, instalada no governo Dilma, em 2012. O filme apresenta essa história do ponto de vista da esposa e dos filhos de Rubens Paiva.
Serviço:
AINDA ESTOU AQUI
- Gênero: Biografia, Drama
- País: Brasil
- Classificação: 14 anos
- Duração: 2 horas 15 minutos
- Ano: 2024
Direção: Walter Salles / Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega / Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Antonio Saboia, Guilherme Silveira, Valentina Herszage, Maria Manoella, Marjorie Estiano, Luiza Kosovski, Gabriela Carneiro da Cunha, Barbara Luz, Cora Mora, Olivia Torres, Maeve Jinkings, Dan Stulbach, Humberto Carrão, Carla Ribas, Maitê Padilha, Caio Horowicz, Camila Márdila, Charles Fricks, Luana Nastas, Isadora Ruppert, Pri Helena, Daniel Dantas, Helena Albergaria, Thelmo Fernandes, Felipe Barreto e Lourinelson Vladmir / Direção de Fotografia: Adrian Teijido, ABC / Operador de câmera: Lula Cerri / Gaffer-Chefe de Eletrecista: Ulisses Malta / Maquinista: Cesinha / Colorista: Arthur Paux, Mike Howel, Thomas Debauve / Supervisor de Efeitos Especiais: Claudio Peralta, Sérgio Farjalla, Jr. / Diretor de Arte: Carlos Conti / Caracterizador: Luigi Rocchetti / Trilha Sonora: Warren Ellis / Montagem e Edição: Affonso Gonçalves, ACE / Preparação de Elenco: Amanda Gabriel / Produção: VideoFilmes, RT Features, Mact Productions / Produtora Associada: Daniela Thomas / Coprodução: Arte France Cinéma, Conspiração Filmes, Globoplay / Distribuição: Sony Pictures
Aguinaldo Gabarrão – ator e consultor de treinamento corporativo e de projetos. Um eterno colaborador do DiárioZonaNorte.
Nota da Redação == O artigo acima é totalmente da responsabilidade do autor e colaborador, com suas críticas e opiniões, que podem não ser da concordância do jornal e de seus diretores.